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Fernando Pessoa

Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas em língua portuguesa, a figura central do Modernismo português

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Névoa A névoa envolve a montanha, Húmido, um frio desceu. O que é esta mágoa estranha Que o coração me prendeu? Parece ser a tristeza De alguém de quem sou ator, Com fantasiada viveza Tornada já minha dor. Mas, não sei porquê, me dói Qual se fora eu a ilusão; E ha névoa em tudo o que foi E frio em meu coração.

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Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

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O ANDAIME O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado! Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão. Este seu correr vazio Figura, anônimo e frio, A vida vivida em vão. A 'sp'rança que pouco alcança! Que desejo vale o ensejo? E uma bola de criança Sobre mais que minha 's'prança, Rola mais que o meu desejo. Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam - verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer. Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou. A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha: Despiu-se, e o reino acabou. Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas! Que sonhos o sonho e a vida! Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido. Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido. Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças - Mortas, porque hão de morrer. Sou já o morto futuro. Só um sonho me liga a mim - O sonho atrasado e obscuro Do que eu devera ser - muro Do meu deserto jardim. Ondas passadas, levai-me Para o alvido do mar! Ao que não serei legai-me, Que cerquei com um andaime A casa por fabricar. Fernando Pessoa

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É um campo verde e vasto É um campo verde e vasto, Sozinho sem saber, De vagos gados pasto, Sem águas a correr. Só campo, só sossego, Só solidão calada. Olho-o, e nada nego E não afirmo nada. Aqui em mim me exalço No meu fiel torpor. O bem é pouco e falso, O mal é erro e dor. Agir é não ter casa, Pensar é nada Ter. Aqui nem luzes (?) ou asa Nem razão para a haver. E um vago sono desce Só por não ter razão, E o mundo alheio esquece À vista e ao coração. Torpor que alastra e excede O campo e o gado e os ver. A alma nada pede E o corpo nada quer. Feliz sabor de nada, Inconsciência do mundo, Aqui sem porto ou estrada, Nem horizonte no fundo.

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Tão abstrata é a idéia do teu ser... Dobre - Peguei no meu coração... Quem te disse ao ouvido esse segredo... Abdicação: Toma-me, ó noite eterna... Dorme enquanto eu velo... deixa-me sonhar... Põe as mãos nos ombros... beija-me na fronte... Ao longe, ao luar, no rio uma vela... Sonho. Não sei quem sou neste momento... Contemplo o lago mudo que uma brisa estremece... Gato que brincas na rua como se fose na cama... Não: não digas nada! Vaga, no azul amplo solta, vai uma nuvem errando... O Andaime: O tempo que eu hei sonhado... Sorriso audível das folhas... Autopsicografia: O poeta é um fingidor... O que me dói não é o que há no coração... Entre o sono e o sonho... Tudo o que faço ou medito fica sempre na metade. Tenho tanto sentimento que... Viajar! Perder países! Grandes mistérios habitam o limiar do meu ser... Fresta: Em meus momentos escuros... Eros e Psique: Conta a lenda que dormia uma princesa... Teus olhos entristecem. Nem ouves o que digo... Liberdade: Ai que prazer não cumprir um dever... Hora Absurda - O teu silêncio é uma nau...

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Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

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"E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas..."

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I/ ABISMO OLHO O TEJO, e de tal arte Que me esquece olhar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando - O que é ser-rio, e correr? O que é está-lo eu a ver? Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco - Mesmo o meu estar a pensar. Tudo - eu e o mundo em redor - Fica mais que exterior. Perde tudo o ser, ficar, E do pensar se me some. Fico sem poder ligar Ser, idéia, alma de nome A mim, à terra e aos céus... E súbito encontro Deus. II/ PASSOU Passou, fora de Quando, De Porquê, e de Passando..., Turbilhão de Ignorado, Sem ter turbilhonado..., Vasto por fora do Vasto Sem ser, que a si se assombra... O Universo é o seu rasto... Deus é a sua sombra... III/ A VOZ DE DEUS Brilha uma voz na noute... De dentro de Fora ouvi-a... Ó Universo, eu sou-te... Oh, o horror da alegria Deste pavor, do archote Se apagar, que me guia! Cinzas de idéia e de nome Em mim, e a voz: Ó mundo, Sermente em ti eu sou-me... Mero eco de mim, me inundo De ondas de negro lume Em que para Deus me afundo. IV/ A QUEDA Da minha idéia do mundo Caí... Vácuo além de profundo, Sem ter Eu nem Ali... Vácuo sem si-próprio, caos De ser pensado como ser... Escada absoluta sem degraus... Visão que se não pode ver... Além-Deus! Além-Deus! Negra calma... Clarão de Desconhecido... Tudo tem outro sentido, ó alma, Mesmo o ter-um-sentido... V/ BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO ( Entre a árvore e o vê-la ) Entre a árvore e o vê-la Onde está o sonho? Que arco da ponte mais vela Deus?... E eu fico tristonho Por não saber se a curva da ponte É a curva do horizonte... Entre o que vive e a vida Pra que lado corre o rio? Árvore de folhas vestida - Entre isso e Árvore há fio? Pombas voando - o pombal Está-lhes sempre à direita, ou é real? Deus é um grande Intervalo, Mas entre quê e quê?... Entre o que digo e o que calo Existo? Quem é que me vê? Erro-me... E o pombal elevado Está em torno na pomba, ou de lado? [1913?]

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