Fernando Pessoa
Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas em língua portuguesa, a figura central do Modernismo português
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Autor - Fernando Pessoa
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos. Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver. O criador do espelho envenenou a alma humana.
Autor - Fernando Pessoa
Há em Tudo que Fazemos. Uma razão singular; É que não é o que queremos. Faz-se porque nós Vivemos. e viver é não pensar. Se alguém pensasse na vida; Morria de pensamento. Por isso a vida vivida É essa coisa esquecida. Entre um momento e um momento. Mas nada importa que o seja Ou até que deixe de o ser Mal é que a moral nos reja. Bom é que ninguém nos veja. Entre isso Fica Viver.
Autor - Fernando Pessoa
"Quando eu não te tinha Amava a natureza como um monge calmo a Cristo... Agora amo a natureza como um monge calmo a Virgem Maria... Religiosamente, a meu modo, como antes, Mas de outra maneira, mais comovida e mais próxima... Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos à beira dos rios; Sentado a teu lado reparando nas nuvens Reparo nelas melhor... Tu não me tiraste a natureza... Tu mudaste a Natureza... Trouxeste a Natureza para o pé de mim. Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, Porque tu me escolhestes para te ter e te amar, Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente Sobre todas as coisas. Não me arrependo do que fui outrora Porque ainda o sou..."
Autor - Fernando Pessoa
O Guardador de Rebanhos V Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das coisas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o Sol E a pensar muitas coisas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o Sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do Sol não sabe o que faz E por isso não erra e é comum e boa. Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem? «Constituição íntima das coisas»... «Sentido íntimo do Universo»... Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. É incrível que se possa pensar em coisas dessas. É como pensar em razões e fins Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. Pensar no sentido íntimo das coisas É acrescentado, como pensar na saúde Ou levar um copo à água das fontes. O único sentido íntimo dos coisas É elas não terem sentido íntimo nenhum. Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me: Aqui estou! (...)
Autor - Fernando Pessoa
'Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, diverso, móbil e só, não sei sentir-me onde estou. Por isso, alheio, vou lendo como páginas, meu ser. O que segue não prevendo, o que passou a esquecer. Noto à margem do que li o que julguei que senti. Releio e digo : "Fui eu ?" Deus sabe, porque o escreveu.'
Autor - Fernando Pessoa
D. SEBASTIÃO, Rei de Portugal... Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?
Autor - Fernando Pessoa
Adiamento Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... Esta espécie de alma... Só depois de amanhã... Hoje quero preparar-me, Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Depois de amanhã serei outro, A minha vida triunfar-se-á, Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Serão convocadas por um edital... Mas por um edital de amanhã... Hoje quero dormir, redigirei amanhã... Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... Antes, não... Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. Só depois de amanhã... Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã... O porvir... Sim, o porvir...
Autor - Fernando Pessoa
Tenho Dó das Estrelas Tenho dó das estrelas Luzindo há tanto tempo, Há tanto tempo… Tenho dó delas. Não haverá um cansaço Das coisas, De todas as coisas Como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, De ser, Só de ser, O ser triste brilhar ou sorrir… Não haverá, enfim, Para as coisas que são, Não morte, mas sim Uma outra espécie de fim, Ou uma grande razão – Qualquer coisa assim Como um perdão?